segunda-feira, 2 de março de 2009

Licença para morrer: a questão do sepultamento dos ingleses por ocasião dos Tratados de 1810

Saco da Gamboa - Cemitério dos Ingleses
Rio de Janeiro - GRAVURA EM REPRODUÇÃO


A transmigração da família real para o Rio de Janeiro, em 1808, foi motivada pelas circunstâncias da invasão da Metrópole pelas tropas napoleônicas, em represália a recusa de Portugal em aderir ao Bloqueia Continental. Para esta decisão, muito contribuiu a existência, desde o século XVII, de propostas de transferência da Corte para o Brasil, como solução de emergência em momento de crise (NEVES, 2002: 701).
O Rio de Janeiro até aquele momento resumia-se a uma simples sede de vice-reino, cujas Capitanias entendiam-se melhor com a Metrópole d`além mar do que com a capital da Colônia. Marcelo Basile ressalva que a transmigração da Corte para o Brasil teve como base um projeto reformista ilustrado de constituição no Brasil de um poderoso Império Luso-Brasileiro. A partir de então, o Rio de Janeiro tornou-se a importante capital de um vasto império mundial que, além de Portugal e Brasil, compreendia também possessões em mais outros continentes, como a África e a Ásia (BASILE, 2000:188).
É nesse contexto, que o plenipotenciário português residente em Londres, Domingos de Souza Coutinho, assinou em 22 de outubro de 1807 com o representante inglês George Canning uma Convenção Secreta que previa o deslocamento da Corte portuguesa para o Brasil, delineando o perfil das futuras relações comerciais entre a Inglaterra, Portugal e Brasil (ARRUDA, 2008: 37-38). Através da Convenção, os ingleses procuraram garantir que uma vez instalada no Brasil, a Corte portuguesa implementasse tratados de auxílio e comércio entre os dois países. Exemplo disso é que um dos artigos da convenção, que seria excluído do texto final, foi o que demonstrava o real interesse inglês de obter a exclusividade do comércio no Brasil, reservando para si um porto na ilha de Santa Catarina ou em qualquer lugar da costa (Idem: 28). Segundo José Jobson Arruda, a

Transferência da Corte para o Brasil transformava-se, pouco a pouco, na forma pela qual se viabilizaria a hegemonia inglesa no Brasil, independente dos circunstanciamentos de ordem política e militar, todos eles secundarizados em função dos ganhos da política sistemática de expansão, pois aproximariam, de modo irreversível, os mercadores ingleses do Brasil, eliminando o entreposto que havia se tornado excessivamente complicado nos últimos tempos. George Canning, à testa do Foreign Office, diligenciou para que as metas hipóteses da Convenção Secreta de Londres se transformasse em realidade. (Idem: 29)

Como se percebe na citação acima, a decisão da fuga atendia aos interesses do aliado inglês.
Esses fatores definiram a atuação do Príncipe Regente D. João a partir do momento em que chegou à Bahia no princípio de 1808. Estando o Reino ocupado pelos Franceses, era inevitável a extinção do exclusivo comercial, o que foi feito através da abertura dos portos às nações amigas. Decretada em 28 de janeiro, teve em vista a necessidade de deslocar para o Brasil os navios que se dirigiam para os portos metropolitanos. Neste sentido, a abertura dos portos brasileiros às nações amigas constituiu um passo importante na mudança do estatuto colonial. Marcelo Basile sustenta que o governo inglês exigia vantagens especiais em troca do serviço de escolta e proteção prestado à comitiva real, bem como do auxílio militar dado na luta para expulsar os franceses de Portugal. Inaugura-se o período de preeminência inglesa no Brasil (BASILE, 2000:189/190). A partir desta medida, os estrangeiros passaram a chegar ao Rio de Janeiro, principalmente os comerciantes ingleses.
Entretanto, a Abertura dos Portos, por si só, não foi suficiente para os ingleses, que demandavam mais vantagens e garantias para o seu estabelecimento nas terras americanas. O que foi obtido por novos acordos, a exemplo dos Tratados de 1810, que foram o de Aliança e Amizade, contendo 11 artigos públicos e decretos, e o de Comércio e Navegação, contendo 32 artigos, além de uma Convenção , contendo 13 artigos.
Os tratados de 1810 em questão, não se reduziram a assuntos comerciais ou religiosos. Outras determinações foram ressaltadas, entre as quais, a instituição de corte privativa aos ingleses em solo da Colônia, cujos magistrados especiais eleitos pelos ingleses residentes. Autorização, privativa aos ingleses, a cortar e comprar madeiras nos bosques, florestas e matas brasileiras para construção de navios de guerra, com a ressalva aquelas matas destinadas à marinha portuguesa.
Acordou-se outrossim, a não permitir o estabelecimento da inquisição nos estados da América Meridional, abolição gradual da escravidão e delimitaram as possessões portuguesas na África, como única que continuaria o tráfego escravista.
Essas medidas, ainda que algumas não tenham alcançado efetiva prática, desagradaram sobremaneira aos contemporâneos, gerando sentimento antibritânico. Alem disso, a Igreja, através do Núncio papal, colocou os mais sérios empecilhos à tramitação dos acordos por não aceitar as cláusulas que permitiam a liberdade religiosa e proibiam a Inquisição nas colônias portuguesas (FARIA, 2000: 702-704 – MANCHESTER, 1973:87).
Nos tratados, os ingleses também obtiveram espaço para exercitar suss práticas religiosas. O que consta do artigo 12 do Tratado de Comércio e Navegação, como passo a destacar:
Sua Alteza Real O Príncipe Regente de Portugal declara e se obriga no seu Próprio Nome, e no de Seus Herdeiros e Sucessores, a que os Vassalos de Sua Majestade Britânica residentes nos Seus Territórios, e Domínios não serão perturbados, inquietados, perseguidos, ou molestados, por causa de Sua religião, mas antes terão perfeita liberdade de Consciência, e licença para assistirem, e celebrarem o Serviço Divino ao Todo Poderoso Deus, quer seja dentro de suas Casas particulares, quer nas suas particulares Igrejas e Capelas, que Sua Alteza Real agora, e para sempre, graciosamente lhes Concede a permissão de edificarem e manterem dentro dos Seus Domínios. Contanto porem que as Sobreditas Igrejas e Capelas serão construídas de tal modo que externamente se assemelhem a Casas de habitação; e também que o uso dos Sinos lhes não seja permitido para o fim de anunciarem publicamente as horas do Serviço Divino. De mais estipulou-se que nem os Vassalos de Grã-bretanha, nem outros quaisquer estrangeiros de Comunhão diferente da Religião Dominante nos Domínios de Portugal serão perseguidos, ou inquietados por matérias de Consciência tanto nas Suas Pessoas como nas Suas Propriedades, enquanto eles se conduzirem com Ordem, Decência, e Moralidade, e de uma maneira conforme aos usos do País, e ao Seu estabelecimento Religioso e Político. Porem se provar, que eles pregão ou declamar publicamente contra a Religião Católica, ou que procurem fazer prosélitos, ou Conversão, as Pessoas que assim delinqüirem poderão, manifestando-se o seu delito, ser mandada sair do País, em que a Ofensa tiver sido cometida. E aquela que no Público se portarem sem respeito, ou com impropriedade para com os Ritos e Cerimônias da Religião Católica Dominante, serão chamadas perante a Polícia Civil, e poderão ser castigadas com Multas, ou com Prisão em Suas próprias casas. E se a Ofensa for tão grave, e tão enorme que perturbe a tranqüilidade Pública, e ponha em perigo a segurança das Instituições da Igreja,e do Estado, estabelecidas pelas Leis, do Fato poderão ser mandadas sair dos Domínios de Portugal. Permitir-se-á também enterrar os Vassalos de Sua Majestade Britânica, que morrerem nos Territórios de Sua Alteza Real O Príncipe Regente de Portugal, em convenientes lugares, que serão designados para este fim. Nem se perturbarão de modo algum, nem por qualquer motivo, os Funerais, ou as Sepulturas dos Mortos. Do mesmo modo os Vassalos de Portugal gozarão nos Domínios de Sua Majestade Britânica de uma perfeita e ilimitada liberdade de Consciência em todas as matérias de Religião, conforme ao Sistema de Tolerância que se acha neles estabelecidos. Eles poderão livremente praticar os Exercícios de Sua Religião, ou particularmente nas Suas próprias casas de habitação, ou nas Capelas e lugares de Culto designados para este objeto, sem que se lhes ponha o menor obstáculo, embaraço, ou dificuldade alguma, tanto agora,como para futuro (AGUIAR, 1960: 141-142).

Como se percebe, o artigo 12 dava garantias aos súditos ingleses de praticarem sua religião de origem, ainda que condicionados a não externarem suas práticas, tendo em vista a existência de uma religião oficial na Colônia. Dentre as concessões feitas aos britânicos, estava, como se vê, a permissão para fixarem locais específicos para enterramentos. Diante disso, vários cemitérios chamados “de ingleses” seriam construídos em território brasileiro, especialmente em região de portos movimentados, a exemplo de Recife, Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro.
O Cemitério dos Ingleses do Rio de Janeiro foi construído no lugar denominado Forno do Cal – uma antiga chácara pertencente a Simão Martins (BBF, s/d) –, localizado na praia da Gamboa. O terreno foi comprado em 24 de dezembro de 1809 pelo Príncipe Regente e incorporado no ano seguinte aos bens da Coroa, se destinado ao enterramento dos estrangeiros que não professassem a religião católica no Rio de Janeiro (REIS, 1991: 176-177). Consultando o livro de registros de casamentos, batizados e mortes do Britsh Burial Found, verifiquei que o primeiro registro de sepultamento se refere a 5 de janeiro de 1811, o que me levou a concluir ter sido este o ano no qual o referido cemitério entrou em funcionamento (BBF, 1809-1815).
Viajantes europeus que passaram pelo Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX e deixaram relatos sobre o cotidiano da cidade fizeram referências ao Cemitério dos Ingleses. O primeiro relato a ser destacado aqui é o do comerciante inglês John Luccock, que esteve no Brasil entre 1808 e 1820. Segundo ele,
O Saco, ou pequena enseada da Gamboa, porção do litoral sul mais ricamente variegado, também é orlado por um renque de habitações, a que as montanhas formam um fundo verdejante. Fica ali um grande edifício em que os negros recém-vindos cumprem uma espécie de quarentena. Pouco adiante, já na encosta da montanha, encontra-se o cemitério inglês, em que o primeiro enterro se realizou em abril de 1811, infelizmente de perto seguido por vários outros. Pareceram exercer profunda influência no espírito dos brasileiros que os presenciaram. A localidade pouco própria para cemitério, sê-lo-ia muito para residência (Idem, 1975:171).

Chegando ao Rio de Janeiro já no período posterior à Independência, a inglesa Maria Graham relatou em seu diário de viagem sua impressão sobre o lugar:
Fui hoje a cavalo ao cemitério protestante na Praia da Gamboa, que julgo um dos lugares mais deliciosos que jamais contemplei, dominando lindo panorama, em todas as direções. Inclina-se gradualmente para a estrada ao longo da praia; no ponto mais alto há um belo edifício construído por três peças; uma serve de lugar de reunião ou às vezes de espera para o pastor; uma de depósito para a decoração fúnebre do túmulo; e o maior, que fica entre os dois é geralmente ocupado pelo corpo durante as poucas horas (pode ser um dia e uma noite), que neste clima podem decorrer entre a morte e o enterro; em frente deste edifício ficam as várias pedras e urnas e os vãos monumentos que nós erguemos para relevar nossa própria tristeza; entre estes e a estrada, algumas árvores magníficas. Três lados desde campo são cercados por pedras ou grades de madeira. Até a imaginosas e delicadas Jane de Crabbe, poderia pensar sem mágoa em dormir aqui (Idem, 1990:366).

O relato de Graham sobre o local se assemelha muito à imagem abaixo. De autoria desconhecida, ela fornece uma visão sobre o terreno descrito pela inglesa, a qual observou com detalhes a imensidão do local e a deslumbrante paisagem oferecida aos olhos daqueles que por ali passavam.


Fonte: http://www.cariocaforever.com/picturegalleries/theenglishcemeteryatgambo.html/11, no link The English Cemetery at Gamboa

Um outro viajante, procurou destacar o traçado do Cemitério da Gamboa. Tratou-se do desenhista e escritor norte-americano Thomas Ewbank, que, chegando ao Rio de Janeiro em 1846, descreveu o cemitério como:
um terreno irregular, parte de uma fralda da montanha, oposto à Baia de Guanabara é o último jazido dos heréticos que morrem por aí. A estrada que leva até ele é necessariamente íngreme e tortuosa. A meio caminho foi erguida uma pequena estrutura onde se pode assis-tir ao oficio fúnebre. As sepulturas são geralmente no chão, numea-das. Os monumentos predominantemente são lajes horizontais. Aqui jazem funcionários estrangeiros, que poderiam agora ser o orgulho dos seus e de seu país – vitima de um falso sentimento de honra, que os destinou à podridão e ao olvido na flor de suas vidas. Dificilmente poder-se-ia encontrar cemitério mais repousante pela terra. Localiza-do no declive de um monte tropical, e todo plantado de nogueiras-da-india, mangueiras, caneleiras, milho, a doce mandioca, araçás, cajus e o cardamomo, com seus racimos rosados, pinheiros, pitangas, cabe-ceiras de frutos alongados e redondos – o cristão poderia desejar de melhor para a sua sepultura ou onde encontrar um recanto mais cheio de emblemas de inocência e imortalidade (Idem, 1976:194).

Aspectos valorizados pela historiografia tradicional recortam a determinação da Coroa Portuguesa de impedir a entrada de estrangeiros no período anterior a 1808. No entanto, é do conhecimento geral que, mesmo antes da abertura dos portos, havia estrangeiros circulando e residindo no Brasil. Também se conhece o controle geral instituído pelo Príncipe Regente aos estrangeiros que entravam em terras da Colônia, no período subseqüente à abertura dos portos brasileiro à navegação e ao comércio europeu. No entanto, o Regente teria usado sua habilidade contemporizadora para dispor de mão-de-obra especializada e liberdade religiosa promulgando no dia 11/08/1811, carta régia regulando tolerância religiosa prevista pelo Tratado de Comercio e Navegação de 1810.
Nesse sentido, estudos da pesquisadora Rosangela Boy apontam para o caso da primeira siderúrgica do Brasil: a fazenda Ipanema, em Iperó (então parte de Sorocaba) construída por luteranos vindos majoritariamente da Suécia, onde conflito aberto entre os sorocabanos e os estrangeiros ocorreu em fase do desrespeito ao culto protestante declarado livre para aqueles operários suecos contratados para os serviços na primeira siderúrgica, com diversas ocorrências e morte de um carpinteiro de nome Jonas Bergman, o qual foi enterrado no único cemitério de Sorocaba, o da Matriz. E depois desenterrado em razão de ser protestante, tendo o seu corpo sido jogado na rua. Conclui a pesquisadora, que em razão dos conflitos no ano de 1814, se deu um censo, pelo qual a distinção entre protestantes e católicos se identificava.